PROF.ª MS. CLÁUDIA REGINA LEMES.
Sou recém-chegada, de um percurso de pouco
mais que dois anos de estudo do tema violência, sobretudo a violência doméstica
contra a criança e gostaria de propor algumas reflexões sobre violência e
educação.
Bem,
pensando a educação como garantia de acesso ao acervo cultural historicamente
construído, de uma geração para outra, vamos considerar duas instituições
importantes que atuam na educação. A escola e a família e, propor reflexões
sobre o acervo cultural que estas duas instituições têm garantido para as novas
gerações.
No âmbito da
educação escolar existe muitas vezes uma distancia muito grande entre a cultura
escolar e a cultura social de referencia dos alunos e alunas. Os modelos
hegemônicos são usados como referencia ideal.
A escola é
um local onde as relações humanas acontecem entre sujeitos que cumprem
diferentes papeis impregnados dos valores acima apresentados e disseminados
quase sempre de forma irracional em um processo dinâmico e rápido, acaba
reproduzindo o sistema de força que reflete em seu território. A escola acaba
por este meio sendo uma local de formação da cultura, mas, que muito mais
reproduz as ideologias presentes na sociedade do que reflete ou propões
reflexões sobre ela.
É comum na
educação ouvirmos frases como esta: “[...] Vocês
devem calçar um chinelinho de cetim e caminhar bem devagarzinho, sem barulho
para não incomodar e assim vão com o tempo aprendendo como as coisas funcionam”
[1]
Bem, este
tipo de discurso, que nega a individualidade a autenticidade, a identidade, a
singularidade, convive cotidianamente com o ideal da pluralidade cultural, da
tolerância, da necessidade de aprender a conviver da escola e a cultura da paz.
É nítida a
contradição que existe entre a teoria e a prática na educação escolar formal.
Eu chamo a atenção para a palavra “formal”, pois também na escola, é
disseminada a educação informal, que é aquela que se aprende em seu entorno e
que foge do currículo sistematizado. Essa educação diz respeito aos conteúdos
culturais que são produzidos na comunidade escolar e que passam a fazer parte da
identidade da instituição que podem trazer benéficos para os seus integrantes
como podem ser destrutivos como, por exemplo, a prática do bullyng. A escola é muitas
vezes fonte de violência simbólica presentes na sua prática e muitas vezes
também se omite mesmo tendo constatado a vitimização de seus alunos, por outros
alunos ou por agentes externos à comunidade escolar.
Outra
instituição educativa que consideramos importante é a família. As famílias
mudaram na forma de pensar a vida, de produzir, de se organizar como
instituição e de conceber valores. Se, no período anterior, a família
apresentava-se extremamente autoritária e repressiva, hoje ela possui uma forma
um pouco mais solta para lidar com seus membros, o que a princípio
representaria um ganho, se isso não tivesse relação direta com o mercado de
produção a que a criança era atrelada no passado como força de trabalho e que
hoje tem a sua participação melhor garantida na via contrária. No mercado de
consumo. Os membros da família são submetidos à vontade a aos papéis que a
sociedade lhes determina e, “[...] uma vez que, por um lado, o dinheiro está de
modo devastador, no centro de todos os interesses vitais e, por outro é
exatamente este o limite diante do qual quase toda relação humana fracassa.”
(BENJAMIN, 1994, p. 21). E com isso desaparece do plano natural e ético a
confiança irrefletida, o repouso e a saúde. Uma sociedade que, como defende
Fromm (1979), nos últimos cem anos do mundo ocidental, conseguiu criar uma
riqueza material maior do que a criada por qualquer outra sociedade da História
da Humanidade, mas que mata ou abandona as suas crianças, é uma sociedade que
precisa ser repensada.
Então vamos propor
finalmente uma rápida passagem pela educação presente nos meios de comunicação
tecnológico.
Nos dias atuais em que a
os veículos educadores se multiplicam e entre estes veículos temos as mídias e
suas notícias, sabemos que vivemos em um mundo em que a violência está presente
em todas as esferas da vida e que essa situação assusta cada vez mais as
pessoas que acabam produzindo esta cisão de bem e mal. A violência simbólica
produzida neste mundo dissemina o medo na sociedade. O povo[2]deve ser protegido: “A razão
do povo deve ser seus sentimentos; é
preciso, portanto, dirigi-los, e formar seu coração e não seu espírito; eles
devem também ser mantidos em seu estado natural de fraqueza.” (MARCUSE, 1981 p.
123).
A televisão (que também
dissemina e incute algo de violência na sociedade), não condiz com uma educação emancipadora e os acontecimentos reais e
atuais que levam ao conhecimento do grande público a violência cumprindo o papel
do espetáculo como aconteciam nas tragédias das arenas. É muito pouco pensada a
violência que é demonstrada pelas mídias.
A proximidade e
intensidade da violência social praticada na atualidade voltadas para o medo,
disciplinamento e afirmação da cultura nos noticiários televisionados com
formatos de espetáculos, carregam a ideologia da massificação e da alienação do
pensamento. Com isso o que se perde em riqueza humana e em
sentimento de autentica felicidade, aponta Fromm (1979), que é compensado pela
segurança da harmonia e sentimento de pertencimento: “Em realidade, o seu
próprio defeito poderá ter sido elevado à categoria de virtude pela sua
cultura, podendo, assim, proporcionar-lhe uma intensa sensação de êxito. (FROMM, 1979, p. 29).
Muitas crianças invisíveis que são vítimas do abandono e
que vagam pelas ruas das cidades, nos sinais de trânsito, nos trens urbanos,
carregam uma história de vida anterior ou paralela à situação atual, na qual se
desvelam as diversas formas de violência por atos ou omissão daqueles que
deveriam proteger a sua condição peculiar de desenvolvimento.
Muitas dessas crianças
deixadas ao próprio destino fogem de casa, ou saem sem compromisso de retorno
para o lar, que não lhes oferece refúgio, proteção, carinho, requisitos básicos
para o desenvolvimento saudável e humano de qualquer criança. Foram inúmeras
vezes na história que toda uma sociedade se omitiu diante da barbárie, e ainda
o faz quando trata como invisível a criança pedindo nos faróis; a criança
marcada pela violência física, sexual, pela negligência; a criança que freqüenta
diariamente as salas de aulas de tantas escolas públicas e privadas; a criança
que é atendida em ambulatórios vítimas de maus-tratos; a criança que é explorada
nos trabalhos que degradam sua saúde e roubam-lhe as oportunidades de formação
para a cidadania; entre outras crianças. Nesse sentido, “a investigação sobre o
preconceito tende a reconhecer a participação do momento psicológico nesse
processo dinâmico em que operam a sociedade e o indivíduo.” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 173-174).
Adorno (1996, p. 5)
aponta que a consciência progressivamente dissociada das coisas humanas
descansa em si mesma e se converte em pseudoformação, por isso, vimos o sonho da
– a libertação da formação, imposição dos meios e da estúpida e mesquinha
utilidade – ser falsificado “[...] em apologia de um mundo organizado
justamente por aquela imposição. No ideal de formação, que a cultura defende de
maneira absoluta, se destila a sua problemática.”
A cultura da violência é
naturalizada na sociedade fragilizada em conflitos e guerras, na qual crianças
são feitas soldados no trânsito, nas
competições esportivas, gangues de ruas, na exploração do trabalho infantil,
nas comunidades marginalizadas e excluídas do acesso aos bens produzidos nos
países. A criança na condição de coisa reflete a fragilidade da nossa
civilização que não é capaz de preservar a sua integridade.
Fromm (1979) qualificou
como violência compensatória a
violência que é empregada como um substituto de atividade produtiva por alguém
que se vê impotente diante das forças sociais que o dominam. Este, por possuir
vontade e capacidade de liberdade para criar e modificar o mundo, é impelido a
agir desse modo.
Esta necessidade humana
expressa-se nas primitivas gravuras das cavernas, em todas as artes, no
trabalho e na sexualidade. Todas essas atividades são o resultado da capacidade
do homem para dirigir sua vontade na direção de um objetivo e sustentar o
esforço até esse objetivo ser alcançado. A capacidade para assim usar esses
poderes é chamada potência. (A potência sexual é somente uma das formas de
potência.). (FROMM, 1979, p. 32).
Quando o homem fracassa,
tornando-se impotente diante das forças que não é capaz de vencer, tenta
restaurar suas capacidades identificando-se com uma pessoa ou grupo de pessoas
que disponha de poder para a sua satisfação de participação simbólica na vida
de outro homem. Tem a sensação de agir, mas na verdade só está se submetendo,
ou então age usando o seu poder para
destruir.
Nesse sentido,
instaura-se a violência na sociedade
capitalista. Ação sem reflexão é falência da prática destituída de teoria. O
fazer sem a razão é como o sujeito que reproduz um sistema de forças sendo
impulsionado a agir. Segundo Roggero (2001), a identidade constitui-se a partir
da participação do indivíduo nas relações sociais e requer adaptação e renúncia
aos instintos.
A identidade não se
constrói pela violência compensatória que, conforme Fromm (1974, p. 33), é a
essência do sadismo e infringe dor aos outros. Ela tem o impulso de exercer o
domínio sobre outra pessoa e torná-lo objeto indefeso de sua vontade. Tem por
meta tornar o indivíduo como algo inanimado. “Criar vida exige certas
qualidades de que carece a pessoa impotente. Destruir vida só requer uma
qualidade: o uso da força.” A cultura que fornece a alma da civilização é
constituída pelo espírito e o processo histórico da sociedade, tanto no plano
das idéias como no plano material. Essa cultura é capaz da fazer frente à
violência. Essa á a forma de se compreender a verdadeira cultura da paz.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. Teoria da semicultura.
Tradução de Newton Ramos de Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. Educação
e Sociedade, ano XVII, n. 56, p. 388-411, dez. 2006.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 1 v.
______. Obras Escolhidas. 5. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1995. 2 v.
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos,
violência e cotidiano escolar. In: ______ (Org.). Reinventar a escola.
3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 137-166.
LEMES, Claudia Regina. Formação Cultural e
o Fenômeno da Violência Doméstica Contra a Criança, 2009. 177 f.
Dissertação de Mestrado – Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, 2009.
FROMM, Erich. O coração do homem: seu
gênio para o bem e para o mal. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
______. Psicanálise da sociedade
contemporânea. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
______. A arte de amar. 7. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
HORKHEIMER, Max. Autoridade e
família. In: ______. Teoria crítica: uma documentação. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo:
Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1990. p. 175-236.
HORKHEIMER, Max; ADORNO,
Theodor W. Temas básicos da sociologia.
São Paulo: Cultrix, 1973.
MARCUSE, Herbert. Idéias sobre uma teoria
crítica da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
______. Cultura e psicanálise. 3. ed.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
ROGGERO, Rosemary. A vida simulada no
capitalismo: um estudo sobre formação e trabalho na arquitetura. 2001. 273 f . Tese (Doutorado) –
Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2001.
[1] Esta
frase foi deferida por uma liderança educacional para orientar como se deve
agir aqueles que estão iniciando em um novo local de trabalho e encontram
dificuldades na relação com aqueles funcionários mais antigos.
[2]
“Isto é aqueles que são mantidos por suas ocupações puramente mecânicas e
contínuas em um estado habitual de infancia”(MARCUSE,
1981)-o termo infancia é usado pelo autor neste ensaio para designar a condição
de imaturidade a que o homem é mantido por outros homens na relação de
autoridade e submissão.